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Âncora 1
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          Maria Rocidélia Cardoso Gomes nasceu no interior do Ceará, em uma cidade chamada Apuiarés. Uma entre 11 irmãos, casou cedo com um homem da mesma cidade, trabalho recomendado a todas as moradoras mulheres da localidade. Dividiu a carga horária deste serviço com outros vários – ela não se satisfazia apenas com um. Foi costureira, professora, diretora de escola, comerciante, devota católica – era quem organizava todos os eventos da igreja –, mãe de dez filhos, e tudo isso enquanto vivia sua vida. Agora com 87 anos, já não tem mais capacidade para realizar nenhum trabalho devido à sua condição de portadora da Doença de Alzheimer.

          A DA, como também é conhecida, é uma condição que afeta hoje cerca de 35 milhões de pessoas no mundo inteiro, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Geralmente acomete pessoas acima de 65 anos, ocorrendo alguns casos especiais em pessoas mais jovens. Junto com outras demências, entrou na lista das doenças que mais matam no mundo e ocorre principalmente nos países considerados em desenvolvimento, como o Brasil, devido ao aumento do envelhecimento da população. Das pessoas ao seu redor, talvez seja provável que pelo menos uma vai possuir algum parente que sofre dessa demência. Mas afinal, o que de fato é o Alzheimer?

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          O primeiro caso diagnosticado data do início do século XX, na Alemanha de 1906. O psiquiatra Alois Alzheimer trabalhava no hospital psiquiátrico de Frankfurt quando recebeu como paciente uma mulher de 51 anos chamada Auguste Deter. O marido, que a internou, disse que a mulher começou a ter delírios repentinos de ciúme acerca de sua vizinha e, em dados momentos, parecia não reconhecer a si mesma. Alois passou a acompanhar Auguste e presenciou uma deterioração anormal em sua sanidade, somado ao esquecimento de como realizar atividades essenciais como comer e andar. Quando a mulher morreu, quatro anos depois, o psiquiatra e neuropatologista teve acesso ao seu cérebro para realizar estudos para identificar a causa das paranóias. Ao vê-lo de perto, o médico constatou que o órgão havia reduzido de tamanho em comparação com um cérebro normal.

          Alois fez diversas outras comparações entre cérebros e identificou os mesmos sinais em outras pessoas com idade avançada e que possuíam sintomas semelhantes aos de Auguste. Ele publicou inúmeros textos e artigos relatando a pesquisa, contudo, a sociedade científica da época não reconheceu nenhum dos estudos. Para eles, o esquecimento sempre foi uma causa normal atribuída a idade e não uma doença que aflige as pessoas. Porém, com o passar do tempo e o aumento da longevidade, o argumento de que todas as pessoas velhas são senis e dementes já não era mais sustentável. A pesquisa sobre a doença passou para as mãos de outros e, graças aos estudos pioneiros realizados pelo psiquiatra, no final da década de 60 recebeu o nome de Doença de Alzheimer.

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Quando a memória falha         

 

   Hoje, a Doença de Alzheimer é classificada como uma demência neurodegenerativa crônica e sem cura. Ela ataca os neurônios do cérebro, o que acaba afetando as funções cognitivas do corpo, da fala e da memória e é conhecida por possuir três fases em seu avanço – leve, moderada e avançada. Seus principais sintomas iniciam como dificuldade ao lembrar de datas, nomes, memórias mais recentes de informações gerais, e vão avançando até se transformarem em esquecimentos de lembranças mais antigas, dificuldade para comunicação, mudanças de humor e delírios. Em sua última fase, a pessoa já não consegue mais viver por conta própria, pois não consegue se alimentar, tomar banho e mesmo respirar.

          Rocidélia encontra-se hoje entre a fase moderada e avançada. Depende em tempo integral de duas cuidadoras que a ajudam a realizar todas as funções do dia a dia. Gosta de conversar, mas suas frases são formadas por palavras aleatórias e raramente fazem sentido. Adora beijar, abraçar, apertar e demonstrar carinho tanto quanto receber, porém às vezes se zanga e começa a distribuir beliscões. Quando foi diagnosticada com Alzheimer em 2011, seu marido, o comerciante Raimundo Gomes, passava por diversas complicações da diabetes. Ele faleceu sete anos depois. Quando vivo, os dois passavam o dia juntos sem conseguir se locomover com facilidade para outros lugares. Após sua morte, o quadro de Rocidélia apresentou piora progressiva até chegar à condição atual.

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            Emília Falcão é enfermeira do ambulatório de geriatria do Hospital Universi- tário Walter Cantídio, em Fortaleza, onde também funciona o Centro de Apoio ao Idoso, que oferece serviços médicos para a saúde de pessoas mais velhas. O núcleo recebe idosos que procuram serviço de geriatria, comorbidade e portadores de diversos tipos de demência. Questionada sobre a diferença entre os cuidados, ela aponta que “é muito mais difícil cuidar de uma pessoa com Alzheimer devido a transformação de personalidade que acontece no paciente, que acarreta na perda da cognição, a compreensão das coisas.”

           Outra dificuldade é que a DA não afeta apenas o paciente, mas toda a família e pessoas ao redor. “É difícil para os familiares ver seu pai, sua mãe, ou quem seja, apresentar um comportamento diferente, é estranho. Em um momento o paciente pode estar agressivo e do nada afundar em um quadro de depressão, onde não reage a nada”, relata. Para tentar atrasar esse quadro, é importante que o diagnóstico seja feito ainda no início da doença, para que os cuidados necessários possam ser tomados o quanto antes.

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A raiz do esquecimento

          O presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) do Ceará, Phelipe Cabral, diz que os estudos acerca a doença ainda são muito recentes e que apenas agora estão sendo difundidos na sociedade, porém “ainda são pouco aprofundados por aqueles que passam pela realidade do Alzheimer”. Mesmo não tendo sido encontrada uma cura, existe um tratamento ideal para cuidar dessas pessoas, que envolve geriatras, neurologistas, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, dentre outros. Mas essa não é realidade para a maioria da população, já que o serviço ofertado por planos de saúde e pelo serviço público é precário quanto a estes cuidados. É essa parte que complica o diagnóstico precoce da doença.

          Em Fortaleza, existem três centros especializados no tratamento do Alzheimer, o Hospital Geral de Fortaleza, o Hospital Geral César Cals e o Centro de Apoio ao Idoso do Hospital Universitário Walter Cantídio. Para receber atendimento em qualquer um destes equipamentos, é preciso passar por uma triagem em postos de saúdes para só então ser direcionado devidamente. “Quanto mais cedo for realizado o diagnóstico, mais cedo ela vai conseguir se organizar pro futuro. Sabendo do declínio da função cognitiva, do desempenho, a pessoa pode organizar o resto da sua vida junto da família, quem vai cuidar dela e como ela vai querer ser cuidada”, explica Phelipe.

       A enfermeira Emília garante que o Hospital Universitário realiza todos os exames necessários junto com o paciente, porém lamenta a falta de diversos outros serviços. “Aqui nós temos uma neuropsicóloga, mas não temos uma psicóloga para atuar juntamente com a família do idoso. A neuropsicóloga faz apenas a avaliação, mas não tem condição de acompanhar. Faz falta também profissionais de outras áreas, como nutricionistas e fisioterapeutas”, relata. Outro atendimento garantido pelo serviço público é o medicamento, liberado na farmácia após o encaminhamento do médico. O tratamento farmacológico disponibilizado conta com três tipos de remédio: Rivastigmina, Galantamina e Donepezila, que atuam retardando a evolução da doença no cérebro.

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Memórias de uma normalista

      Ana Alzira Passos enfrentou o processo de ter um parente com Alzheimer duas vezes. O primeiro foi seu pai, professor universitário e homem bastante ativo. Quando começaram os primeiros sintomas, todos acharam ser coisa da idade, até que uma amiga da família reclamou que ele andava bastante aéreo. “Quando recebemos o diagnóstico, foi terrível. Eu até tive começo de depressão”, relata Ana. Ela conta que o processo de assistir o declínio da sanidade de seu pai foi doloroso, mas mesmo assim seguiram investindo em uma boa qualidade de vida para ele. “Levávamos ele para praia, para restaurante, aniversários, a gente comemorava tudo, porque existe a tendência do Alzheimer de deixar a pessoa parada, se isolando. Nós tivemos essa preocupação de não ceder a essa tentação”, conta.

      O segundo caso ocorreu com sua mãe, Maria Avany Passos, logo após o falecimento do marido por complicações do Alzheimer. Ela começou a apresentar sinais de esquecimento e ficar repetitiva. No começo, o geriatra e o neurologista da família informaram que seria bom esperar para ver se não se tratava apenas de luto pela morte do marido. Após um tempo, ela voltou ao neurologista e foi então diagnosticada com Alzheimer. A partir daí, começou a usar remédios e a receber um tratamento específico. Já são quatro anos desde que descobriu que estava com DA, mas graças aos cuidados, a precocidade do diagnóstico e a socialização dela, Maria Avany convive de forma saudável com a doença.

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        “Agora na quarentena, nós a incentivamos a botar pra frente a ideia dela de escrever um livro de suas recordações de vida”, conta Ana. “Ela foi e escreveu. Como eu fiz a edição, eu encontrei muita coisa repetida que ela contava, mas mesmo assim o livro saiu”, disse. O título do livro recebeu o nome de “Recordações de uma Normalista” e teve até evento de lançamento. “No lançamento, nós reproduzimos uma sala de aula. Levamos uma carteira escolar, o quadro negro, arrumamos até uma palmatória. Ela discursou e até declamou duas poesias”.

          Para Ana, ter vivido toda a mesma experiência antes com seu pai permitiu que todos da família soubessem o que fazer com segurança. “Com o papai a gente não sabia se tava agindo certo, mas como estendeu bastante, sabemos que algo deu. Então a gente repete as mesmas coisas com a mamãe”. Para ela, o principal cuidado foi continuar mantendo ativa a vida social da mãe. “Eu acho que a pessoa tem que tentar manter a vida o mais natural possível, principalmente a social. Se você exclui a pessoa com Alzheimer da sociedade, a piora vai ser muito mais rápida”, conclui.

           O terapeuta Phelipe Cabral complementa que a medicação por si só não vai manter a pessoa sã, o que ajuda a retardar a doença é todo o contexto. “O importante é saber o que é essa doença e não reduzir a pessoa apenas a isso, porque ela tem uma história de vida, cultura, conhecimento, seus valores que devem ser respeitados. A procura da atenção não pode ser voltada somente para a medicação, mas a informação de como fazer o manejo correto para que a integridade dessa pessoa não seja tirada. Eu tenho que protagonizar essa pessoa, não posso colocar no campo da incapacidade. Tentar fazer algumas coisas que ela já desenvolvia antes, para que continue na maior normalidade possível. A informação educa as pessoas. Se eu sei que o Alzheimer é uma manifestação clínica e que eu posso contornar isso com ações, eu posso ajudar”, finaliza.

           Em seu estado atual, Maria Rocidélia passa boa parte do dia deitada em sua cama, remanejada para a sala onde fica sempre à vista das cuidadoras. Desde o ano em que teve o diagnóstico até hoje, muito mudou em sua rotina. Partindo de um desentendimento da doença, o que ela causa, como fazer para evitar o agravamento, dentre outros questionamentos, seus nove filhos percorreram um longo caminho de estudo, paciência e adaptação. Apesar de ser difícil aceitar que a perda da memória, tão associada ao espiritual, fosse motivada por um fator biológico, todos precisaram passar por cima da dor de ver alguém esquecer de você – uma mãe esquecer do próprio filho – para garantir dignidade aos dias que precedem o apagamento de toda sua história.

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